Super app: o WeChat chinês é uma solução que funcionaria no Brasil?

Super app

Por Cezar Taurion

Jeff Bezos, da Amazon, disse acertadamente, que “quem tem o cliente tem o poder”. Sob essa ótica, a Amazon criou uma plataforma onde você comprar praticamente tudo, de livros a assistir vídeos. O livro “A Loja de Tudo”, de Brad Stone mostra os princípios básicos que fizeram a Amazon ser hoje o que é.  Na China, o WeChat adotou a filosofia de ser o app para tudo e ultimamente temos visto muitas empresas aqui no Brasil seguirem ou tentarem seguir essa filosofia. O melhor exemplo brasileiro é a Magalu. O movimento da Magalu é bem claro, transformar-se num super aplicativo, onde o cliente resolve todos os seus problemas, desde comprar uma TV até pedir um hambúrguer. O conceito por trás é que se a Magalu tiver o cliente, quanto mais valor ele gerar para esse cliente, num mesmo lugar, melhor.

Não é de estranhar, portanto, que um dos temas que mais aparecem nas discussões com executivos é a possibilidade de cada empresa lançar seu próprio super app. Mas, será que essa solução se aplica a todos os negócios? De imediato vemos um conflito: se o super app se propõe a ser um local onde o cliente resolveria tudo, existiria espaço para todas as empresas terem também um super app?

Vamos começar analisando o super app que deu origem ao fenômeno, o WeChat da Tencent. Basicamente, na China pode-se dizer “Não há Zoom, Facebook, Twitter, Instagram, WhatsApp…usamos WeChat. Diga-me o seu número WeChat e estaremos em contato”. Desde seu lançamento em 2011, ele se tornou um dos maiores aplicativos autônomos do mundo, com cerca de 1 bilhão de usuários ativos por mês.

Mas a China é um outro “planeta” e o que dá certo lá, não necessariamente vai dar certo em outras culturas. Por exemplo, o WeChat é responsável por cerca de 90% de todos os usuários de aplicativos de mensagens na China, enquanto na maioria dos países ocidentais, como no Brasil, temos uma distribuição de uso entre diversos sistemas como WhatApp, Facebook Messenger e Telegram. E embora o Messenger e o WhatsApp tenham o Facebook por trás, são apps diferentes. Na China, o cenário é outro. O WeChat não é apenas mais um aplicativo de mensagens. É necessário para a sobrevivência!

Livro A Loja de Tudo: “quem tem o cliente tem o poder” – onde encontrar

Super app chinês: você faz tudo pelo WeChat

Se olharmos a tela do smartphone de um usuário chinês típico veremos o WeChat e alguns outros poucos apps, como o AliPay (outro super app).  Já aqui no Brasil, por exemplo eu uso dois aplicativos para notícias, um aplicativo para cada uma das minhas companhias aéreas, algumas opções para pedir comida em qualquer lugar (quero pegar os descontos que oferecem). Além de aplicativos de fidelidade de algumas empresas, um ou dois de mobilidade, dos dois bancos que mantenho conta, um app de previsão de tempo, de interface com meu wearable de esportes e saúde, redes sociais, mensagens, jogos etc. Quando procuro fazer algo que um dos meus aplicativos atuais não conseguem, simplesmente faço uma busca e com certeza encontrarei algo novo na App Store para cuidar disso.

Na China, quase tudo você faz pelo WeChat. O que caracteriza um super app é sua experiência integrada e contínua com os principais hubs online, contornando sites individuais de empresas e suas interfaces distintas. Assim, pelo Wechat Wallet, logo que você registrar seu cartão de crédito ou conta bancária, pode começar a usar todos os serviços financeiros disponíveis do super app, como compra passagens de trem ou avião; comprar e gerenciar os serviços públicos da sua cidade, como marcar uma consulta médica e até mesmo pagar multas de trânsito; pedir comida ou reservar uma estadia em um hotel.

Com o WeChat “Take a Look” você tem acesso a um feed de notícias com curadoria de algoritmos para notícias, postagens interessantes e conteúdo que você pode querer ler. Com o WeChat / JD Shopping você acessa um mercado de compras fornecido pela JD, uma das maiores plataformas de comércio eletrônico da China. Já com o WeChat Games acessa um enorme conjunto de jogos e um ecossistema de jogos dentro do aplicativo. E, claro, o WeChat também é o WhatsApp chinês.

Além de tudo isso, em 2017, o WeChat lançou a funcionalidade de Mini App que permite aos desenvolvedores desenvolverem aplicativos dentro do ecossistema WeChat. Eles, geralmente tem funcionalidades específicas, ​​que podem tirar proveito de informações já existentes no ecossistema WeChat, como pagamentos, e manter uma interface de usuário consistente e padronizada. Por exemplo, a Tesla tem um mini aplicativo para ajudar os usuários a localizar as estações de carregamento da Tesla e outros serviços da Tesla.

Mini Apps do WeChat

Os Mini Apps do WeChat são a maior prova do sucesso do WeChat em dominar todos os aspectos da vida chinesa. Em vez de apenas desenvolver para uma loja de aplicativos específica como App Store ou Google Play, com o WeChat, as empresas colocam seus aplicativos dentro do super app. Em resumo, sem visitar ou ser redirecionado para outro aplicativo, o WeChat criou um ecossistema onde o usuário pode desde enviar mensagens aos amigos, fazer compras, almoçar juntos e se reunir, em um só app. O WeChat e o Alipay passaram a ser o centro da vida digital de um chinês típico.

É interessante notar que nem todos os super apps são iguais. O Alipay veio do e-commerce Alibaba e está mais focado em serviços financeiros, enquanto o WeChat começou como um aplicativo de mensagens, expandindo não apenas para serviços financeiros, mas também para serviços diários como e-commerce, jogos, viagens e muitos outros.

WeChat: não seria bem sucedido no Brasil

E aqui no Brasil? Um super app poderia chegar próximo ao poder de fogo do WeChat? Para mim isso não tem chance de acontecer. O mercado ocidental, como o brasileiro, é altamente pulverizado e cada empresa busca atrair o máximo de atenção dos seus clientes. Além disso, a experiência chinesa é bem diferente da brasileira.

Na China, a internet começou praticamente com o smartphone e assim não havia o hábito de navegação fragmentado por diversos sites, que acabou se tornando a base da App Store: em vez de sites, apps. Mas, além disso, o WeChat teve mais dois fatores que o ajudaram a se disseminar de forma tão ampla: o conceito chinês de dinheiro como um item social e a relação única do governo e das empresas com o povo chinês.

Cultura chinesa: dar dinheiro sempre foi tradição

Na cultura chinesa, pacotes vermelhos decorados com caracteres bordados em ouro representando riqueza e fortuna sempre foram presentes monetários para comemorar um feriado, casamentos ou outras reuniões sociais e familiares. Dar dinheiro de presente, portanto, sempre foi tradição chinesa. Digitalizar isso foi um pulo, impulsionado por um mercado onde o nível de bancarização era extremamente baixo. As pessoas tinham smartphone, mas não contas em banco. 

A outra variável é que para um super app prosperar é necessário capturar e usar um imenso volume de informações e os critérios de privacidade aceitos pela sociedade chinesa são bem diferentes dos nossos. O governo chinês também deu uma grande ajuda proibindo o uso de diversos sistemas estrangeiros, abrindo espaço para os empreendedores chineses concorrerem apenas entre si.

Um efeito WeChat aqui no Brasil só existiria se, por exemplo, os varejistas de comércio eletrônico puderem ter acesso ao efeito viral das plataformas sociais para estimular a adoção da plataforma. Como isso não vai acontecer, pois nenhum varejista teria a pretensão de concorrer com um WhatsApp ou Facebook, na nossa cultura de aplicativos individuais, o que vejo é, em vez de super apps, teremos superconectores, plataformas como as ofertadas pela Magalu para prover seus usuários com serviços adjacentes, sem entrar na sandice de concorrer com WhatsApp ou Instagram.

Aposte em superconectores

Os superconectores se propõem a prover uma maior agregação de serviços e para dar certo, sua base deve partir de aplicativos com alta frequência de uso, como entrega de comida, chamada de carona, mensagens instantâneas ou pagamento digital, e depois expandir para outros serviços. Usando essa abordagem, as BigTechs começaram a consolidar seus serviços para fornecer uma experiência de smartphone mais integrada.

Por exemplo, o Uber, que já oferece opções de carona, micro-mobilidade e entrega de comida, lançou um serviço de bilhetagem de mobilidade em várias cidades do mundo chamado Uber Transit. No final de outubro de 2019, lançou o Uber Money para oferecer serviços financeiros aos seus motoristas. O novo serviço inclui a Uber Wallet, que pode ser a espinha dorsal da estratégia de superconector do Uber. Por sua vez, Mark Zuckerberg anunciou sua clara ambição de construir um superconector, melhorando as interações entre os diferentes aplicativos que fazem parte do Facebook (em particular Facebook, Instagram, Messenger e Whatsapp).

Embora o domínio de um único ator sobre todos os serviços diários seja improvável por aqui, podemos antecipar que haverá forte competição pelo modelo de superconectores, com um número limitado de atores sendo vencedores e fornecendo a parte das nossas necessidades por meio de parcerias e interação otimizada entre seus serviços.

Ecossistema digital

Em outras palavras, teriam que criar um ecossistema digital em que todos os envolvidos devem colaborar entre si para reduzir os atritos entre os serviços, proporcionando uma experiência integrada no aplicativo. O uso extensivo de APIs (Application Programming Interfaces) é uma parte inerente e essencial dessa perspectiva.

Por exemplo, no Alibaba, a base dessas interações é o Alibaba Open Plataform, ambiente que, no início de 2019, já utilizava 1500 diferentes APIs para trocar dados com seus parceiros de negócios. Essas 1500 APIs do ecossistema Alibaba respondiam por mais de 5 bilhões de trocas de dados ao dia.

Os consumidores buscam o que?

Assim, na minha opinião, não vejo muito sentido em buscar a criação de um super app estilo WeChat ou AliPay. Faz muito mais sentido ser um superconector, integrando-se com outros serviços adjacentes. Em vez de ter vários aplicativos para pedir comida, compartilhar caronas e opções de pagamento, os usuários provavelmente querem apenas um.

Os consumidores podem não estar especificamente exigindo super apps, mas certamente desejam a conveniência e a simplicidade que os super apps podem oferecer. Mas, atenção: dificilmente uma empresa de delivery conseguirá em curto ou médio espaço de tempo ofertar um portfólio de reservas de hotel na proporção e variedade ofertada por um app especializado como o Booking.

Da mesma forma, não parece fazer muito sentido comprar algo dentro do app de um banco, pois por mais que haja investimento e incentivo em cashback, eles não vão ser tão eficientes na experiência do consumidor quanto um Mercado Livre ou o Submarino. Aplicativos verticalizados em geral entregam experiências melhores, pois possuem competências específicas. Delivery de comida é totalmente diferente de fazer uma transferência bancária, ou mesmo reservar um hotel e uma passagem aérea. Assim, manter as funcionalidades dentro das áreas adjacentes em vez de tentar ser “one stop shop” parece ser a solução que pode decolar aqui no Brasil.

Portanto, antes de se lançar em uma empreitada que pode gastar muito dinheiro e não trazer o retorno esperado, analise friamente o mercado de super apps e não entre nele por modismo, mas apenas se realmente fizer sentido para seu negócio. Parece óbvio, mas nem sempre o óbvio é seguido.

Cezar Taurion é Sócio da Kick Ventures e VP de Estratégia e Inovação na Cia Técnica, mentor e investidor em startups. Conheça sua trajetória e como ele se tornou um dos maiores nomes em Tecnologia da Informação no Brasil. Leia aqui

Leia também: O CIO estratégico: riscos e oportunidades

COMPARTILHE: